— Salve querido escrivão. Como tem passado?
— Bem, muito bem. Salve o Senhor. Estava com saudades de ouvir sua voz.
— A recíproca é verdadeira. Tenho me ocupado em diversas atividades, e não julgueis mal, não apareço com mais frequência por falta de tempo. Apenas isto. Outrossim, saibam do meu carinho por todos, leitores e apreciadores de minhas histórias.
— Nós que agradecemos ao nobre espírito.
— Não há de quê. Bem, quero que conheçam um lugar, onde estive visitando uma sessão de Umbanda. Um caso curioso chamou-me a atenção naquele dia, e diz respeito a uma cura instantânea realizada por um Guia de Umbanda. Como sabes, visito terreiros diariamente, e este foi uma exceção aos outros: casa simples, despida de luxo e de toda pompa, onde o amor e a caridade imperam, algo incomum. A maioria dos terreiros são lugares luxuosos, carregados de soberba, orgulho e vaidade. Terei em vista descrever o local com a maior precisão que a memória proporcionar:
Era uma casa de madeira, simples, e podemos dizer já bem danificada pelo tempo. Localizava-se numa ladeira, em meio a outras construções muito mais imponentes e belas. Com uma cerca feita de taquaras, com simples arames esticados, e bem mal esticados, davam uma aparência quase de não haver cerca alguma, sendo até as plantas entranhadas na cerca uma proteção maior contra invasores externos. No portão de entrada, sem pavimentação, apenas chão batido, dois cachorros a espera daqueles que fossem visitar a casa. Dois cães muito amáveis é verdade, tipo sem raça definida, o famoso vira-lata. Cheiravam e faziam festas a todos os que por ali passavam, funcionavam quase como recepcionistas. Alegres, recebiam um a um, e os acompanhavam até a porta de entrada da casa, onde ficavam olhando para dentro e abanando o rabo, só retornando para o portão quando o próximo visitante chegava.
No interior da casa, a porta de entrada dava acesso a uma antessala, com dois sofás amplos. Seus revestimentos quase não existiam mais, mas poderiam ainda acomodar os corpos cansados e doentes que ali chegavam, pois pediam um descanso. Nas paredes, quadros de família misturados a imagens de santos católicos, padres, e bem ao centro o clássico “A Sagrada Família”. Apesar da simplicidade do local, a paz que ali reina é sem igual.
Na sala da casa, que teve sua mesa de centro arredada em virtude dos trabalhos, uma cristaleira antiga. Nela, pratos e xícaras guardados em seu interior. Em cima, a imagem do Cristo ao centro, ladeado por Nossa Senhora; Padre Cícero; a Virgem da Conceição; Pai João e Mãe Maria (a imagem clássica de Pretos-velhos); o Caboclo Oxóssi; Pai Sete-flechas; São Jorge e um busto de Padre Réus. Este é o Centro de Umbanda Ogum guerreiro e Sete-flechas.
Iniciaram os trabalhos. O dirigente, um simpático senhor, quase calvo, usava uma boina para esconder a calvície, algo que foi retirado de sua cabeça assim que o Guia baixou. Antes, porém, feita uma prece de abertura, a qual o dirigente fez com o rosário na mão e os braços abertos, mãos para o alto, de frente para o altar na cristaleira, chegou pela porta de entrada uma panela com brasas dentro, onde foram colocadas ervas secas para a defumação, e iniciou a cantoria: “Defuma com as ervas da jurema, defuma com arruda e guiné…”
Todos nos defumamos, encarnados e desencarnados que assistíamos o trabalho. Nesse sentido, faço justiça ao número de pessoas que estava na sessão: eram aproximadamente umas 35 pessoas encarnadas, e algo que chegava a uma centena de desencarnados, entre nós, trabalhadores e àqueles que estavam ali em busca de auxílio. A casa pequena, tinha 6 cômodos ao todo, mas todos eles foram utilizados pelos trabalhadores do espaço para acomodar espíritos, tudo muito bem vigiado interna e externamente por uma equipe comandada por Sr. Tranca-ruas.
O Guia que comandava os trabalhos nesta noite era Caboclo Sete-flechas. Ao chegar, caminhou lentamente na antessala, acompanhado de seu cambono, olhou atentamente a todos os presentes, onde indicou os que iria atender. Falou ao cambono que os outros competia ao Pai João curar. Após o Caboclo terminar seus atendimentos, o dirigente deu passagem ao amável Preto-velho, Pai João, que chegou e logo já solicitou o “pito”, algo apreciado também pelo seu médium. A sessão logo ficou mais descontraída, onde se ouviam mais conversas, e o Preto-velho era a voz que ecoava no terreiro, junto da criançada que brincava em torno da casa. O primeiro atendimento para Pai João já demonstrou o poder desta entidade: um senhor aparentando uns 35 anos, ostentava uma ferida em sua barriga e dizia já haver consultado diversos médicos sem êxito. O Guia pegou as mãos do consulente entre as suas, enrolou o rosário em ambas e sentenciou: “Se tens fé no Cristo, sairá daqui curado meu fio”! Fechou os olhos, fez uma prece e pediu um galho de guiné, ao qual benzeu o homem e disse: “Vá na paz fio. Vai fica bão”. O homem levantou-se meio atordoado, caminhou até a porta de saída e teve um enjoo forte, colocando para fora uma água de cor rosa. Os cambonos correram em socorro, acomodaram-no no sofá e lhe deram água. O Preto-velho prosseguiu como se nada estivesse acontecendo, pois já atendia outro consulente, uma jovem moça grávida que enfrentava problemas na gestação. O jovem permaneceu sentado, e logo o Guia pediu para que o chamassem. Disse o Preto: “Vê se agora o fio aprende, e para com os rabo de saia e cum vida de boêmio. Tá aí o resurtado. Mas toma chá de goiaba por 14 dia antes de deita que tu vai fica bão.”
O jovem era casado — investigamos o caso depois — e guardava relacionamentos extraconjugais, onde uma de suas concubinas havia contratado um trabalho de magia para terminar com seu casamento. Porém, sua esposa, que também era espírita, recebeu uma blindagem e ele foi vítima em seu lugar. Estratégia usada pelo astral superior para salvar o casamento e regeneração do homem em questão. A lei de causa e efeito é implacável, e o jovem inconsequente ostentava aquela ferida em sua barriga apenas como um sinal externo de um mal muito maior, tanto em seu estômago quanto em seu espírito imortal, algo que foi curado pelo amor do Preto-velho, quase como uma intercessão do velho João em favor do encarnado. Note bem que tudo isso se produziu sem efeitos de pirotecnia, nem alardes por parte do Guia. A Umbanda trabalha na cantoria, porém, em silêncio.
O Preto-velho despediu-se, colocou seu rosário pendurado em frente a cristaleira (ou congá), e chegou o Sr. Tranca-ruas. Pediu o defumador, foi até a antessala, onde apenas 3 pessoas encarnadas permaneciam junto a multidão de espíritos, e num gesto como de uma saudação, adentraram o recinto diversos falangeiros do Exu, que guiaram todos os espíritos presentes na casa. Alguns foram forçados é verdade, mas a maioria foi sem causar problemas. Permanecemos apenas nós, espíritos, visitantes e Caboclo Sete-flechas, além de Tranca-ruas. Enquanto defumavam a casa e os encarnados, uma falange da linha de Iemanjá adentrou o terreiro e terminou a limpeza astral. Estava encerrado o trabalho na tenda mais humilde que visitei por estes dias, contudo, a mais expressiva em espíritos de elevado grau e poder.
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