Pergunte à maioria dos umbandistas de hoje se não receberam catequização, ao menos na infância. Sem dúvida, a grande maioria lhe responderá que sim. Talvez aí já esteja explicado grande parte das crenças e do imaginário de nosso público. Ainda imersos nas descrições clericais da vida pós-morte – sem mencionar o contexto protestante, que tudo faz para apagar a crença na imortalidade, supondo uma possível ressurreição dos corpos, parecida com os dogmas católicos; mas pior ainda: a graça mediante apenas a aceitação de Jesus, nem que seja no último minuto de vida terrena, mesmo que esta tenha sido uma sucessão de erros, pecados, desgraças alheias e tudo mais que o ser humano é capaz de cometer. O principiante umbandista, incapaz de estudar e aprender por si, apenas troca os nomes: deixa de temer o inferno, mas passa a temer o umbral, almeja o céu, que agora passa a se chamar Aruanda.
O senso comum produz estas aberrações, propagadas pelos umbandistas, estes que deveriam ser os primeiros a mostrar sua crença firme na imortalidade. Contudo, a transferência natural destas crenças milenares, que pregam céus, infernos e purgatórios, onde o sofrimento impera e castiga, nos parecem naturais frente a uma doutrina que não tem mais de 115 anos.
A filosofia umbandista, que tem na doutrina dos espíritos sua expressão, encontra naquele que foi o codificador, Allan Kardec, a explicação do próprio professor, que sabia ser necessário esclarecer minuciosamente o quadro do novo mundo espiritual que se descortinava. A obra “O Céu e o Inferno”, publicada em Paris, a primeiro de agosto de 1865, traz toda explicação. Porém, há uma particularidade pouco lembrada quanto aos dogmas da igreja. Segundo eles, o sofrimento dos infernos é físico, na pele mesmo. O condenado deve sentir o calor do fogo, o queimar das carnes, o penetrar dos tridentes, a pressão e o trucidar das correntes. Mas quando são enviados aos infernos, esses condenados ainda são – como explica Kardec quanto à concepção da igreja – sem corpo, pois esse morreu e se desfez neste mundo.
Os condenados, presentemente no inferno, podem ser considerados puros Espíritos, uma vez que só a alma aí desce, e os restos entregues à terra se transformam em ervas, plantas, minerais e líquidos, sofrendo inconscientemente as metamorfoses constantes da matéria. (O céu e o Inferno, página 53).
Não se pode esquecer-se desse processo, quando se trata da doutrina da igreja! No momento da morte, ninguém sofre ainda. Só depois, quando Deus destruir este mundo e, no juízo final, restituir os corpos, agora imortais, mas feitos igualmente de carne e ossos, para que o sofrimento no inferno seja físico, real, fisiológico. Desse modo, continua Kardec:
“Os eleitos ressuscitarão, contudo, em corpos purificados e resplendentes, e os condenados em corpos maculados e desfigurados pelo pecado. Isso os distinguirá, não havendo mais no inferno puros Espíritos, porém homens como nós. Conseguintemente, o inferno é um lugar físico, geográfico, material, uma vez que tem de ser povoado por criaturas terrestres, dotadas de pés, mãos, boca, língua, dentes, ouvidos, olhos semelhantes aos nossos, sangue nas veias e nervos sensíveis” (Idem, ibidem).
Aqui está o ponto fundamental deste artigo. A concepção dos infernos considera um lugar físico, material, semelhante ao mundo atual, todavia piorado. Não chega a luz do sol, não se percebe o suceder dos dias e noites, não há lua. Um cheiro insuportável de enxofre, fumaça, suor, sangue. Labaredas de fogo, caldeirões fumegantes. Desolação e sofrimento sem fim. É preciso considerar um Deus bastante vingativo que odeia muito aqueles que o desobedeceram para condenar alguém a viver eternamente nesse horror! É algo para se pensar à parte. Basta imaginar que uma inocente criança, simples e alegre em seu lar, nos braços de seus pais, cuidada com amor e carinho, mas que não tenha sido batizada! Arrisca, a coitadinha, de sair desse lar aconchegante e, depois do juízo, se ver sozinha, fugindo dos tormentos dos demônios, abandonada eternamente pelo seu criador!
A doutrina espírita oferece uma explicação bastante diversa da vida após a morte. Primeiramente, o mundo espiritual é também um lugar físico, mas cujas propriedades são completamente diferentes de nosso mundo. Enquanto aqui, se colocarmos pessoas de personalidades diversificadas, como a mãe de Jesus, um bandido, Herodes, camponeses e um filósofo genial, todos numa sala, e fizermos uma fogueira enorme, todos irão suar de calor, não importa o quanto difiram moral e intelectualmente. Ao levarmos esse mesmo grupo para o polo norte, todos iriam sofrer um frio lancinante, igualmente. O corpo físico de todos nós reage da mesma forma, conforme o ambiente físico no qual se encontra. Esse raciocínio valeria caso a vida futura ocorresse, como a doutrina das igrejas cristãs imaginam o céu e o inferno. Os espíritos superiores ensinam, porém, que o mundo espiritual tem a particularidade de ser influenciado diretamente pelo que pensam e sentem seus habitantes. É o inverso de nosso mundo. Aqui, o ambiente influencia nosso corpo (lugar frio esfria o corpo). No mundo dos espíritos, segundo o espiritismo, o corpo espiritual tem a propriedade de ser mais denso e materializado, quando o espírito está apegado às emoções e imperfeições, e torna-se leve, tênue, alcança distâncias, pode transpor-se para outros planos, quando o espírito evolui intelecto-moralmente.
Ou seja, um bom espírito ganha, pela constituição mesma de seu perispírito, a liberdade de agir, de ir e vir, de transportar-se pelos orbes. Enquanto isso, um espírito imperfeito, pela condição materializada de seu corpo espiritual, em virtude do padrão de seus pensamentos e sentimentos, tem reflexos das sensações materiais e vivencia as ILUSÕES do frio, calor, sede, fome, medo e tantos outros. São ilusões, mas com plena realidade pela subjetividade do próprio espírito, ao se manter prisioneiro de suas próprias escolhas! Quando uma diversidade de espíritos presos aos seus apegos, imersos na raiva, medo, vingança, inveja, materializam o perispírito e estão juntos, vão moldando o ambiente ao seu redor pela força de seu pensamento. Eles poderiam criar um ambiente agradável, belo, sublime até. Mas suas ideias fixas não deixam. Seus pensamentos densos criam ambientes escuros, pesados e desagradáveis. Mais ainda, não há um lugar onde os espíritos sofredores sejam jogados para sofrer. É o inverso. São os pensamentos e sentimentos densos, as imperfeições morais do próprio indivíduo, a causa do ambiente que ele cria para si.
O mundo espiritual é imanente a este, é bom lembrar. Nós, encarnados, estamos vivendo em dois mundos ao mesmo tempo. Aqui, com o corpo físico. E no mundo espiritual, com nosso perispírito. Não faz sentido, então, nos preocuparmos com o lugar que iremos após à morte. O raciocínio é outro! Onde já estamos no mundo espiritual agora? Segundo nosso padrão de pensamentos e sentimentos, estamos sintonizados, ambientados, em determinadas condições espirituais. Quem tem raiva constante, materializa também o perispírito. Quem se desprende, permanece sereno, vive em cada momento sua emoção adequada. Não se apega aos fatos passados, revivendo emoções passadas. Esse mantém seu perispírito leve, suave, desmaterializado. Céu e inferno são criações pessoais de cada um de nós. São escolhas livres, regidas por leis naturais. A autonomia é o fundamento da vida.
E como fazer para sair dessa situação difícil na qual se encontram muitos espíritos depois da morte? Há uma só saída: A vontade. Nenhum outro ser pode mudar o padrão de pensamento e sentimento do outro, só ele mesmo. Só muda quem quer mudar. Quando um espírito decide sair do sufoco e sofrimento que está vivendo, basta uma prece sincera a Deus, um apelo aos bons espíritos, e será imediatamente auxiliado, por alterar voluntariamente seus pensamentos! Não é preciso ficar absolutamente puro para mudar sua vida. Basta uma mudança em suas disposições morais, explicou Kardec. E isso está ao alcance de todos. Guarde esse ensinamento. Um dia ele poderá, certamente, lhe ser útil!
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