A história de Maria Molambo da encruza

A história de Maria Molambo da encruza

Para quem me conhece há mais tempo, sabe que sou um fumante inveterado. O hábito de fumar, tão demonizado pelo nosso tempo, para mim, que não pertenço ao inconsciente do politicamente correto, é algo que me acalma, e faz o cérebro funcionar um pouco melhor. Pois bem, estava fumando meu cigarro, o relógio marcando quase meia-noite, a hora grande da Umbanda. Os estudos são mais produtivos a noite, e tudo fica mais claro, muito mais claro. Pensava na Pomba Gira, que tanto me desperta encantos. Sim, moça séria, que tem algo que incomoda. Pensava nela, e queria saber: Quem foi esta mulher em vida? Fez algo de importante? Foi acaso uma nobre, ou uma plebeia. Minha cabeça fervia…

 — Sabia seu moço que você é por demais atrevido?

Congelei dos pés à cabeça. Uma voz doce, suave, mas sarcástica soou ao pé do ouvido.

 — Quem és? Tive a pachorra de perguntar. Mas não sei como, já sabia se tratar dela.

— És burro ou idiota? Não me chamou querendo saber de mim? Então, te atenta que não tenho tempo a perder. Sou uma mulher ocupada. Detesto coisas fúteis e infantilidades. Já perdi muito tempo de minha existência com elas, e simplesmente não me submeto mais a isso. Só vim porque creio que pode ser útil estas notas. Vai menino, anota aí, e cuida que não repetirei nada.

— Estou honrado e pronto a lhe ouvir. Falei isto e me calei, entendi que ali eu não estava em uma situação privilegiada, mas sim, por um acréscimo da misericórdia divina, servia de escrivão a alguém muito importante. As linhas que seguem foram difíceis de serem escritas. Minhas mãos quase não respondiam a meus comandos, devido às emoções que se misturavam em minha mente ao ouvir a voz de um espírito feminino que, por um instante, deixava de ser Maria Molambo e era apenas Ana Rita, o nome deste espírito em sua última encarnação.

— Nasci e me criei na cidade do Rio de Janeiro. Batizada com o nome de Ana Rita, fui uma carioca do século XIX. De descendência portuguesa, e com a vinda da família real para o Brasil, que realizou importantes mudanças no País, consegui estudar, coisa que não era para muitas mulheres ainda. Adquiri cultura e erudição tanto quanto me foi possível. Não preciso me estender sobre detalhes aqui, pois não será difícil para aqueles que conhecem um pouco da história deste país concluir que pertencia à elite carioca. Minha família era quase toda, ou ligada ao exército, a política e a agricultura. Sabe, não direi que tive uma infância e adolescência ruim não, ao contrário, eram anos de alegria.

No meu baile de 15 anos, fui prometida àquele que seria meu companheiro durante toda a vida. Omitirei seu nome, consta nos livros da história política deste país. Tive a honra de ter um baile de 15 anos, coisa para poucas moças da época, além de ser algo relativamente novo em nossa sociedade, trazido por franceses que fugiram dos horrores da revolução francesa e eram ligados à nossa família. Pois bem, vi aquele homem pela primeira vez naquela noite, e ele não tardou em conversar com meu pai e arranjar o casório que logo aconteceu. Nesta época, mulheres eram corajosas e talhadas para assumir um lar, tão logo conseguissem entender algo da vida. O matrimônio, filhos e todas as responsabilidades de uma mulher não eram nadas assustadoras.

Meu esposo, que era deputado do então município neutro, do Rio de Janeiro, era um dos chefes do partido liberal da época. Era um liberal sincero, moderado em seus sentimentos políticos, tolerante para com seus adversários, e principalmente monarquista franco e dedicado às instituições públicas deste país.

Ao seu lado, por sua influência e incentivo, escrevi diversas vezes para jornais da época; claro, sempre usando codinomes para não despertar embates piores dos que sofríamos. Apesar de toda liberdade trazida com a instalação da corte no país, onde tínhamos uma liberdade sem igual, principalmente na imprensa e nas ideias, queríamos estender esta liberdade para todas as áreas da vida humana. Lutávamos por liberdade econômica, o fim da escravatura, a qual já tínhamos conseguido muitos avanços e leis que davam alguma proteção aos escravos, assim como educação pública para toda população. Tínhamos amplo acesso a Coroa, eu e meu esposo, e assim participamos de importantes mudanças na vida cultural brasileira. O fim da censura prévia e o clima de ampla liberdade de imprensa favoreceram a produção cultural. Os jornais foram os grandes divulgadores dos romances sob a forma de folhetins. Saber ler e escrever, ainda que restrito ao ambiente da Corte e às grandes cidades, foram abrindo caminhos para as transformações. Abriram-se dezenas de escolas para meninos em sua maioria, mas também meninas começavam a ter algum acesso. Sabe, sinto uma tristeza profunda em ver sua geração não guardar, nem valorizar o que fizemos. Quem não honra seus antepassados perde a memória, e entram para o rol dos ingratos. Sabemos quem são os canalhas responsáveis por isso. Alguns já estão aqui, outros logo virão, e não perdem por esperar.

Então moço, lembro com carinho estes tempos, mas fato é que me casei, tive dois filhos, uma menina e um menino, um marido exemplar, que hoje continua ao meu lado como valoroso companheiro, onde ele também engrossa as fileiras da organização, e somos bons amigos. Não guardamos mais nosso vínculo de matrimônio por opção nossa. Meus filhos seguiram outros caminhos, e nos visitamos periodicamente.

Já responderei o que você quer saber, vamos lá. (Neste ponto da narrativa a danada leu meus pensamentos, pois queria saber como alguém que, parecendo não ser uma grande devedora da lei, se tornou uma Pomba-gira).

Em nossa casa havia uma governanta, que foi presente de meu pai quando nos casamos. Sim, uma escrava, mas que em nossa casa nunca foi tratada como tal, mas como alguém da família. Seu nome era apenas Maria, carinhosamente chamada por nós de Dona Maria. Logo após meu casamento, comecei a ter algumas “alucinações”, era assim que eu entendia. Ouvia vozes e via o que mais ninguém via, comecei a ficar louca, pois não entendia aquilo e pensava: só pode ser castigo de Deus, pois estou lutando contra o clero — os integrantes do partido conservador, o qual fazíamos oposição, eu veladamente na imprensa e meu esposo na Câmara, eram em sua maioria do Clero — e eu então, acreditava ser um castigo divino. Dona Maria, um belo dia que não sairá jamais de minha memória, chamou-me e disse: — “Sinhá, descurpa o que vo lhe dize, mas tu tá com incosto. Teus Orixá me conto. Pode me surra e castiga por tá falando ansim, mais não guento mais ve sunce ansim”.

Narro com as palavras dela, porque são inesquecíveis, mudaram minha vida. A partir daquele dia, com a ajuda desta que foi uma segunda mãe para mim, foi me revelado um plano das trevas arquitetado por encarnados, nossos inimigos nas lides para nossa destruição. Comecei a entender o mundo espiritual, dos Orixás, e fui agraciada por ter ela como minha Yalorixá, a qual colocou a mão na minha cabeça e me iniciou à Iansã. Me ajudou e guiou os primeiros passos na vida mediúnica, pois fui laureada com a mediunidade ostensiva na minha última reencarnação. Ainda assim, também por influência do meu esposo, fizemos parte do primeiro grupo espírita nascente do Rio de Janeiro, onde me aprimorei em estudos na doutrina dos espíritos.

Meu marido desencarnou antes de mim, e segui o resto dos meus dias fazendo por nós dois, lutando contra um estado de coisas que crescia em nosso país, fazendo todo bem que me era possível, cuidando de nossa família, estudando a doutrina dos espíritos, trabalhando em mesas de desobsessão e estudos espíritas. Não me casei novamente após a partida de meu esposo, não que me faltassem pretendentes, mas sentia a influência e o carinho daquele que me foi companheiro e nossos ideais seguiam vivos dentro de mim, o que era suficiente. Sorte minha ter pensado assim quando na carne. Resisti a minhas inclinações que me eram reminiscências de outras existências, e que por vezes levam milênios para serem quitadas. Apesar disso, eu era, sim, muito exibida, me vestia com extremo bom gosto e era muito bela. Fazia questão de expor este atributo de Deus, que havia me presenteado na encarnação.

Então, seu moço, nenhuma história cabe em uma página de jornal, e sei que tu vais colocar lá isso. Pincelei aqui e ali, para entenderem: Para ser Exu ou Pomba Gira de Umbanda não é necessário ter sido prostituta, ou assassino quando encarnado. Muito pelo contrário, pois aqueles que foram por demais caídos e cometeram crimes hediondos ou com grandes danos a humanidade, podem até serem aceitos, mas não sem muitos anos de treinamento e estudo, o contrário daqueles pouco devedores da lei. Também aqueles que pensam me invocar para “amarrar homem”, destruir uma família, seduzir amantes e tudo mais o que a mente doente deste século pode criar entre os encarnados, estão redondamente enganados. Se eles são idiotas, e o são, eu não sou, e posso falar por meus pares da organização. Aqui não tem pessoas como vocês que tem um sentimento agudo dos próprios direitos e o completo amortecimento do senso de dever.

Procurei me integrar a organização tão logo foi criada, por meio de outros amigos que tenho até hoje neste lado da vida. O golpe fatal que me fez vir para o lado da organização foi em 1889, quando, já desencarnada, presenciei o triunfo do mal em nosso país. Sei que alguns não entenderão minha colocação, mas cada um que pense por si. Então o sentimento de continuar sendo útil à minha pátria que tanto amei e a este povo, meu amor sincero pelos Orixás, analisadas minhas obras na terra, em virtude do seu valor, obras de luz, de ascensão, de preservação, de progresso e para o bem público, as quais havia consagrado minha vida na terra me deram credenciais para fazer parte da organização. E por que Molambo? Lembra de quando falei que adorava me exibir frente a todos? Prefiro não dar sorte ao azar não. Melhor evitar que “coisas” de encarnações bem passadas retornem e me façam escrava novamente. Então, Molambo lembra alguém que é molambento né? Melhor ser vista assim, e para lembrar que molambo vem de lixo, e meu prazer é arrastar o “lixo” humano para o lado de cá e cuidar dele com muito afinco. Ah, ah, ah, ah, ahaaaaa. Despeço-me, com escusas pela escrita, que infelizmente o “aparelho” do qual me sirvo é extremamente limitado e não me deixa “fruir” a contento, ah, ah, ah, ahaaaa. Quem sabe um dia conto tudo? Quem sabe. Além disso, adoro este provérbio árabe: “Não repares em quem sou, mas recebe o que te dou”.

Respeitosamente, com lembranças mui particulares, Ana Rita, hoje Maria Molambo da Encruza.

Após estas linhas ainda pacóvio; as gargalhadas que ouvi quando não conseguia codificar as ideias recebidas, o sentimento de estar em meu lugar, ou seja, a sensação de não ser nada e, ao mesmo tempo, o tudo para mim mesmo; enfim, me recolho também ao descanso, não sem antes meditar sobre cada palavra deste espírito.

Avatar de Michael Pagno

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Todos os textos aqui publicados são de responsabilidade do autor, e não representam necessariamente a opinião da comunidade da Tenda Xangô 7 Raios.